UFRJ armazena maior coleção de cérebros de golfinhos e baleias do país
Enquanto alguns crescem sonhando em serem astronautas, bombeiros ou atletas, outros possuem a certeza de que a ciência e a pesquisa serão o motivo de suas maiores realizações profissionais. Foi assim que ainda aos 11 anos, Kamilla Souza, descobriu sua paixão pela ciência, sendo fortalecida ao longo dos anos e concretizada por meio de seus esforços nos estudos de cetáceos no Brasil.
Hoje, em uma geladeira comum, localizada no Instituto de Física da UFRJ, Kamilla mantém seus mais de 50 cérebros de golfinhos, recuperados de inúmeros rios e mares espalhados pelo país. Em potes que poderiam facilmente guardar o resto do almoço de domingo, a pesquisadora conserva os materiais que serão utilizados em suas pesquisas a respeito do sistema neurológico desses animais.
O início dos estudos em cetáceos
Fascinada pela anatomia de corpos humanos, foi no final de sua graduação em Ciências Biológicas (UFRJ) que Kamilla optou por se debruçar sobre o sistema nervoso e a anatomia comparada, analisando o cérebro de animais mamíferos com o de humanos. Naquele momento, o seu estudo teve como objeto um elefante africano, doado por uma instituição internacional.
O objetivo principal da pesquisa naquele momento era contar as células do sistema nervoso dos animais e comparar com a quantidade presente no cérebro humano, levando em consideração o diferente tamanho do córtex (local do cérebro onde se julga armazenar as habilidades intelectuais) entre ambas espécies.
A partir dessa experiência, como líder do grupo, a pesquisadora deu continuidade a seus primeiros passos no estudo neurológico de baleias e golfinhos (cetáceos) durante sua pesquisa de mestrado. Essa buscava entender como os cérebros, maiores que os de humanos, funcionam e se configuram, por exemplo no caso das cachalotes, como o maior cérebro do reino animal em decorrência do seu grau de evolução.
Construção de um banco de cetáceos
Hoje, Kamilla é uma das poucas pesquisadoras brasileiras dedicadas à pesquisa neurológica de golfinhos. No início dos estudos, sob coordenação de Bruno Mota, houveram inúmeras dificuldades quanto aos dados e literatura utilizada.
Primeiramente, as baleias e golfinhos são animais de porte gigantesco e que vivem submersos, os quais os pesquisadores possuem uma maior dificuldade para encontrar e estudar. Logo, os dados existentes, oriundos da pesquisa dos animais até então coletados, eram muito antigos e/ou vindos do exterior, o que inviabiliza parcialmente sua aplicação.
Assim, uma das etapas primordiais do projeto se concentra na construção de um banco de dados atual e brasileiro, que possibilite um estudo mais específico e aprofundado sobre a composição celular do cérebro dos cetáceos. Dito isso, essas informações tornam-se cruciais para aprimorar as pesquisas e entender, por exemplo, o quanto o ambiente influencia na composição cerebral de animais que vivem em diferentes ambientes, águas mais rasas ou profundas, e doce ou salgada.
Rede de colaboração em cetáceos
Entre 2014 e 2023, passando pelo mestrado e doutorado, o número de cérebros de golfinhos coletados para pesquisa passou de quatro para mais de 50. Esse feito só foi possível graças à rede de colaboração firmada pela pesquisadora com 14 instituições brasileiras e os pesquisadores vinculados à elas.
A partir da análise de coleta de animais, percebe-se que Rio e São Paulo são as regiões de maior concentração, sendo esse último em decorrência de um alto índice de pescada acidental. Contudo, o banco de dados de cetáceos vai muito além desse eixo, contando com suporte na região Amazônica, nos estados do Amazonas e Pará, por exemplo.
Escolhidas estrategicamente, essas instituições facilitam a coleta de cérebros de golfinhos e baleias que encalham no litoral brasileiro e/ou nos rios amazônicos. Em virtude da rápida decomposição do cérebro, sendo o primeiro órgão a iniciar o processo, os pesquisadores possuem uma janela entre 12 a 24h após a morte para coleta do material. Assim, são classificados em code 2, 3 ou 4, como exemplificado abaixo.
Dessa forma, em parceria com centenas de pesquisadores, Kamilla não precisa se deslocar de norte a sul a cada informe de possível resgate de cetáceos, geralmente, enviados no grupo de WhatsApp compartilhado com pescadores da região. Assim, a partir de um preciso alinhamento e uma educação ambiental aplicada aos envolvidos, os cérebros são coletados e armazenados adequadamente para o devido transporte.
Colaboração é a palavra-chave
Um dos grandes objetivos de Kamilla com a sua pesquisa em cetáceos é o fortalecimento da área no território brasileiro, sem a necessidade de apoio exclusivo de instituições estrangeiras. O Brasil, por exemplo, é um país rico de espécies diversas, com potencial para estudo daquelas que ainda são desconhecidas pela ciência.
Por isso, a rede de colaboração se torna tão necessária para que o projeto se multiplique e seus impactos possam ser sentidos em regiões cada vez mais vastas. Foi com esse objetivo, de ampliação da rede e de coleta de outros materiais de animais, que a Profª Vera Silva, do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (INPA), se tornou uma integrante essencial.
De acordo com a pesquisadora, em seus mais de 40 anos de pesquisa como bióloga, participou de inúmeras coletas de materiais, como o caso do golfinho da Amazônia. Quando foi solicitada para doar o material, que estava sob posse da coleção de mamíferos aquáticos do INPA, não teve dúvidas que era o cenário ideal para um animal que vinha sendo mantido em conservação há 30 anos.
Vera Silva também reforça que “a ciência é construída de passo a passo e com muitas pessoas e a minha palavra-chave é colaboração.” E por isso, faz questão de apoiar pesquisadores emergentes, que assim como Kamilla, trazem novas tecnologias e novos questionamentos.
O impacto desta pesquisa é gigantesco e possibilitará uma maior compreensão morfológica e neurológica dos mamíferos aquáticos. Além disso, Kamilla possui outra grandiosa missão de valorização da ciência brasileira, os profissionais envolvidos e suas diversidades. Com uma rede muito mais preparada e colaborativa, se torna possível fortalecer cada vez mais os estudos de cetáceos em território nacional.
Essa pesquisa é financiada pelo Instituto Serrapilheira e gerenciada administrativa-financeiramente pela Fundação Arthur Bernardes.
Deixe um comentário